https://api.soundcloud.com/tracks/201735178/stream?client_id=N2eHz8D7GtXSl6fTtcGHdSJiS74xqOUI?plead=please-dont-download-this-or-our-lawyers-wont-let-us-host-audio

Através de um pergunta geradora – Eu sou negro, branco ou…? – gravei as respostas de conhecidos, apresentas aqui em sequência.
Este áudio-documentário foi inspirado no vídeo Você é Macunaíma Colorau?

 

Sem título (para Macunaíma Colorau) | 2015 | Áudio-documentário | 24 min.

 

 

Um dia fui ao cinema com um grupo de amigos. Enquanto conversava com um deles sobre etnia e cor de pele percebi que ele se referia a mim e a ele mesmo não como mestiço, negro ou como pardo. Visto isso, perguntei a ele qual a minha etnia e, rapidamente, ele respondeu que eu era branco, já que minha cor de pele era branca. Isso me transportou para dois momentos distintos, que culminaram, direta ou indiretamente, no trabalho que aqui apresento.

O primeiro momento foi retornar a uma mostra do acervo que o Museu de Arte do Rio constituía em torno do Norte Brasileiro1, em suas questões, querelas e modos de fazer. Nessa mostra, um dos trabalhos me foi pungente: um vídeo-documentário, chamado Você é Macunaíma Colorau?, em que se inquiria a diversos sujeitos (diversos aqui fenotipicamente) do interior de Pernambuco questões como “Você é branco?”, “Você é índio?”, documentando essas respostas. Me impactou esse documentário por situar, sobretudo, a escolha identitária num espaço de conflito: se vemos alguém de pele morena e cabelos lisos negar uma identidade índia, autóctone, isso pode ser lido sob a chancela da deliberação individual; mas, se vemos essa mesma declaração ao lado da de uma pessoa de características étnicas semelhantes afirmando-se veementemente enquanto indígena, a simples justificativa da deliberação individual se desmantela; constitui-se uma arena.2

Já o segundo momento para o qual a resposta do meu amigo sobre minha etnia me transportou foi lembrar de um insistente questionamento que um outro amigo, Julio, sempre me fazia. Julio, negro, integrante de coletivos negros, pesquisador de Abdias do Nascimento3, dentre outras tantas atividades que remetiam às questões do afro-brasileiro, me inquiriu uma dúzia de vezes se eu me considerava negro. Ao modo do vídeo Você é Macunaíma Colorau? Julio me trazia para a arena da identidade, já que declarar-me negro ou outro nesse contexto não diria respeito somente a mim, mas a ele, inquiridor, partícipe do porquê do meu enunciar-me.

Disso tudo, ficou em mim a confirmação dura de que, ainda que a deliberação individual sobre identidade seja pedra fundamental donde se constituiu e se constituem nossas histórias e lutas minoritárias, há um disputa complexa sobre o “ser”, que ultrapassa nossas afirmações determinantes sobre nós mesmos. Há uma discordância entre meu amigo que me considera branco e a polícia que vez ou outra me para nas ruas como potencial suspeito (que, sabemos aqui, se constitui numa identificação fenotípica – leia-se no corpo do preto ou do pardo) e essa discordância é que tem constituído minha subjetividade identitária, a ficção da singularidade sustentada por mecanismos jurídicos (pessoa física, sujeito de direitos), culturais (“diga-me com quem andas e eu te direi quem és.” – Ditado popular brasileiro), geográficos, etc.

Com isso, tive a vontade de me alimentar da empresa do vídeo Você é Macunaíma Colorau? para reinventá-la numa perspectiva sobre apenas um sujeito – eu, suburbano no Rio de Janeiro, universitário, filho de branca e negro e com uma circulação por estratos sociais diversos razoável – perguntando a conhecidos e desconhecidos “Eu sou branco, negro ou…?” e registrando suas respostas em áudio. A opção pelo áudio veio em função de pensar a recepção deste trabalho: enquanto Você é Macunaíma Colorau?, sendo em vídeo, gerava sua densidade no enfrentamento entre a autoimagem do sujeito que respondia, sua aparência para nós, audiência e na comparação com os outros excertos-respostas, no áudio-documentário que construo a ausência de minha imagem é fundamental para desestabilizar qualquer referencial fixo. Quem foi gravado aqui não respondeu “Eu sou …”, como em Você é Macunaíma Colorau?, por exemplo, mas respondeu, olhando para mim, “Você é …”. Logo, esse “você” dito pelo áudio-documentário pode se referir a qualquer corpo: ao meu, ao de quem escuta, ou a vários. Mas isso é só uma perspectiva minha sobre o resultado final disso tudo. De concreto há o trabalho e mal posso saber sobre o que ele dirá ao corpo de quem escuta, se falará sobre mim ou não.

Contudo, fazendo isso pude descobrir que dentro de minha própria família sou considerado branco, pardo e negro; que alguns amigos só viam minha negritude e acharam até mesmo ofensivo que eu perguntasse algo assim; que também sou considerado indígena ou mesmo amarelo, terra de siena, cor de areia; e que essa mesma questão poderia gerar tanto respostas categóricas quanto prolixas. E, ainda assim, quando escuto as respostas gravadas em sequência, não reconheço minha imagem se formando, tal qual um espelho. Mais vejo se formar, na imbricação entre culturas, geografias, histórias, concepções jurídicas, encontros, dentre outros vetores, a delineação de um campo estético, no seio dos conflitos e acordos que constituem o social.

Brincaria comparando essa variação toda sobre um tema – minha etnia, cor, identidade – à entropia, transformações em um sistema que, atuando dentro dele, são irreversíveis. Desordens que, por assim dizer, seriam constitutivas da natureza própria daquele sistema; a entropia enquanto caos que constitui. Lembro-me do trecho final do texto Um passeio pelos monumentos de Passaic, Nova Jersey, onde Robert Smithson descreve a entropia da seguinte maneira:

Imagine com o olho de sua mente a caixa de areia dividida em duas com areia preta de um lado e areia branca do outro. Pegamos uma criança e a fazemos correr no sentido horário dentro da caixa completando 100 voltas, até que a areia se misture e comece a ficar cinza; depois disso a fazemos correr no sentido anti-horário, mas o resultado não será a restauração da divisão original e sim grau ainda maior de cinza e aumento da entropia.

O branco e o negro da areia se misturam, assim como o branco e o negro em mim também. Mas, ao contrário da areia para Smithson, minha matiz não se torna cinza. Com o aumento dessa “entropia”, minha cor pluraliza. Se há uma unidade em mim me parece estar tão somente nessa expansão, que vem de fora pra fazer crescer por dentro, no meu eu, diferencial, incontrolavelmente, de forma irreversível.